As confissões de Tommaso Buscetta
Pino Arlacchi
Editora Ática – http://www.atica.com.br
A história recente italiana teve alguns aspectos emblemáticos de interesse universal. Todos ouviram falar da luta à corrupção generalizada, dos juizes da operação Mãos Limpas, dos juízes- mártires do pool anti-máfia, do fenômeno dos "pentiti" (arrependidos ou colaboradores da justiça) que permitiram iluminar finalmente mistérios de crimes que pareciam insolúveis. No livro "ADEUS À MÁFIA" - As Confissões de Tommaso Buscetta", de Pino Arlacchi (Editora Ática), juntam-se duas personagens fundamentais, Buscetta, o primeiro "pentito", e o sociólogo e ex-senador Pino Arlacchi, um dos maiores especialistas internacionais em criminalidade organizada, desde setembro passado vice-secretário geral da O.N.U., com a missão extraordinária de lutar contra o crime transnacional, o narcotráfico, o terrorismo e a lavagem de dinheiro. Eles representam as forças que talvez, pela primeira vez no mundo, estejam colocando em cheque o crime organizado. O livro é um relato em forma autobiográfica, resultado de entrevistas feitas pelo autor com Buscetta e do estudo dos testemunhos dele perante as autoridades judiciais. Cheio de detalhes, é escrito em primeira pessoa, unicamente - explica o próprio autor - como forma de tornar mais viva e imediata a narração. Não é uma obra maniqueísta, o bem contra o mal, mas é uma cortina que se abre num mundo que todos sentem existir, sem poder entender. Numa viagem extraordinária pelos meandros da Cosa Nostra - Máfia Siciliana - e suas ramificações internacionais, Tommaso Buscetta, o primeiro mafioso pentito, conta sua peculiar aventura humana neste mundo ultra secreto, que pareceria ficção se não fosse, infelizmente e comprovadamente, bem real. Ele descreve minuciosamente a trajetória que o conduziu à maior organização criminosa do mundo, como se tornou um dos seus principais líderes e porque resolveu denunciá-la. Regida pela lei do silêncio, a Máfia sofreu um forte abalo quando Tommaso Buscetta, integrante de sua cúpula, decidiu em 1994, após ter sido deportado do Brasil, onde estava foragido, colaborar com a justiça italiana, na pessoa do juiz Giovanni Falcone.
Um homem complexo, interessante e (seria correto afirmar isto ?) até simpático, surge das páginas de ADEUS À MÁFIA". Trata-se da exposição das idéias, das experiências e dos fatos relevantes na vida de um dos maiores mafiosos atuais. Tommaso Buscetta não se considera um "pentito" porque na verdade não está nem um pouco arrependido. Talvez sua única grandeza esteja exatamente nisso. A arrogância de suas convicções de verdadeiro uomo d’onore , como se apelidam os mafiosos da Cosa Nostra, no seio da Máfia antes e perseguido por ela após sua delação e colaboração com a justiça italiana. Diz ele:
- Eu falei e continuarei falando... não porque esteja "pentito", essa é uma palavra que sempre me incomodou e que ainda hoje me dá raiva... De que teria de me arrepender ?
Reneguei, desconheci uma instituição na qual eu acreditava e que servi com lealdade e sem interesse próprio... Não me arrependi de nada. O arrependimento implica em pedido de perdão. Não pedi perdão a ninguém... Sou um homem velho e atormentado... Dei-me conta do ponto a que chegou a Máfia e por isso decidi ajudar a justiça a derrubá-la... Mudei minha mentalidade em várias coisas, mas minha personalidade é a mesma... Não acredito que fiz tudo errado. Acho que muitas atitudes e idéias de Cosa Nostra, nas quais eu acreditava são ainda válidas, validíssimas.
Em poucas palavras, neste livro, Tommaso Buscetta reafirmou uma grande verdade: uma vez mafioso, sempre mafioso. O que o moveu a falar foi a necessidade de vendetta - vingança, contra seus antigos amigos e companheiros que o haviam traído. As guerras entre as famílias mafiosas estavam se tornando cada vez mais cruéis e sangrentas, com o advento do tráfico de drogas, enormes ganhos e ligações políticas. Buscetta resolveu ser mais inteligente que seus inimigos e quebrar, pela primeira vez na história da Cosa Nostra, a lei do silêncio - omertá, tentando destruir de forma mais refinada a nova Máfia que tinha tomado o lugar da antiga, e sua constituição hierárquica.
- Se me acho mais inteligente que meus inimigos é porque também sei controlar meus impulsos ferinos... Em vez de isso, resolvi colaborar com as autoridades. De assassino em potencial, transformei-me em acusador, em testemunha de acontecimentos trágicos... as pessoas que poderia matar com minhas próprias mãos foram punidas pela Lei escrita.
Nascido em Palermo em 1928, caçula de 17 filhos, cresceu na atmosfera romântica e severa da velha Máfia. A infância numa família honesta, os contatos iniciais com o crime enquanto ainda menino, a percepção do poder mafioso que não representava somente o dinheiro, seus primeiros passos como traficante, os assassinatos. As viagens constantes, a vida na Argentinas, México, Canadá, Estados Unidos. Os dois períodos felizes vividos no Brasil. Muitas amantes, desafiando com isto a ética mafiosa. Três casamentos, sendo que o primeiro e o segundo, se constituíram numa bigamia. Por fim o terceiro e último, desta vez regularizado e por sinal com uma brasileira, Cristina, até hoje com ele. O amor pela família, pelos filhos (dois destes mortos pela Máfia juntamente com um irmão e muitos outros parentes). A dor. A busca constante de liberdade e dignidade. A fé em Deus.
Um livro ambíguo, um documento antropológico e humano importantíssimo. Um homem que passa da honra à desonra, da verdade à mentira com uma dualidade desconcertante. Como traduzir a linguagem coloquial cheia de modismos e vernáculos de uma língua para outra ? Nisto reside o talento do tradutor, plenamente conseguido nesta obra de outra forma complicada. Para facilitar ainda mais a compreensão do texto, há oportunas notas de rodapé explicando fatos e palavras.
Cabe ao leitor extrair deste verdadeiro registro lingüístico e comunicativo de um uomo d ‘onore, suas próprias conclusões. Além de empreender uma caminhada complexa pelos mecanismos secretos dos crimes de maior repercussão da história recente, o leitor estará se embrenhando numa forma de ser e pensar que alcança raízes antigas, praticamente medievais e passa ao mundo moderno pelo qual o protagonista (e talvez não somente ele) se demonstra despreparado. A solidão ontológica do homem, o caos do mundo contemporâneo em sua mudança exponencial, não são somente prerrogativas que alteram e perturbam sociedades arcaicas como a Cosa Nostra italiana com seus dinossauros ainda bem vivos, mas uma constante nos agrupamentos humanos que se acotovelam desde sempre em todos os países e sociedades, inclusive no Brasil, até os nossos dias.
Preso no Brasil em 1984, Tommaso Buscetta vive hoje nos Estados Unidos, escondido e protegido pelo F.B.I. Ele continua sendo o homem mais procurado pelas poderosas famílias mafiosas, pois alguns de seus chefes foram capturados em função de suas revelações. Revelações que fizeram luz inclusive sobre atentados e assassinatos ainda obscuros, como a morte de Enrico Mattei, presidente da E.N.I., no famoso "acidente" de avião de outubro de 1962 que simplesmente mudou a história da Itália e que, sabe-se hoje graças a Buscetta, foi encomendada pelas companhias petrolíferas e Máfia americanas à Máfia siciliana. Como a morte do político Aldo Moro, do General Dalla Chiesa, de jornalistas, agentes, religiosos, juizes, como Giovanni Falcone e Paolo Borsellino, famílias inteiras, gente inocente numa carnificina cada vez mais terrível e ligada ao mundo do dinheiro, poder e corrupção política.
A guerra entre crime organizado e justiça continua. Daí a importância humana e histórica desse livro. O depoimento de Buscetta traz a público pela primeira vez a estrutura e funcionamento da criminalidade organizada, sua brutalidade, suas motivações. Motivações e panorama não muito diferentes aliás dos que regem o complexo paraíso humano-desumano no qual vivemos.
Foi a Máfia-empresa que prevaleceu sobre a Máfia-ordenação jurídica e seus códigos de honra ? Foi o espírito do capitalismo selvagem e seus demônios de poder e riqueza que se impôs à ética mafiosa como em muitos outros campos ? Uma reflexão profunda se impõe. A discussão está aberta.
Ficha técnica: Pino Arlacchi nasceu na Itália em 1951. Considerado um dos maiores especialistas internacionais em criminalidade organizada, foi eleito senador do Parlamento Italiano em 1955. Em 1997, tornou-se vice-secretário da Organização das Nações Unidas com a missão extraordinária de lutar contra o crime, o narcotráfico e o terrorismo. Entre seus livros mais conhecidos estão La mafia imprenditrice, La palude e la città, Si può sconff igere la mafia, Gli uomini del disonore, Imprenditorialità illecita e droga e Il processo. O professor Arlacchi era amigo e colaborador dos juízes Falcone e Borsellino, mártires e símbolos da luta contra as máfias. O livro "Adeus à Máfia" é dedicado a eles. Pino Arlacchi é membro do Instituto Italiano Giovanni Falcone. Este Instituto existe no Brasil com o nome IBGF (Instituto Brasileiro Giovanni Falcone). A Editora Ática publicou este livro com o apoio incondicional do IBGF. Este Instituto dedica-se à formação de uma cultura de defesa da sociedade brasileira contra a penetração do crime organizado. O presidente do IBGF e grande amigo de Pino Arlacchi é o Walter Fanganiello Maierovitch, Juiz do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo.
Giuliana Giudici.
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